8 de mar. de 2010

Atiraram no passageiro *





Semana passada um trabalhador mau humorado, depois de ter fritado sei lá quantas coxinhas, voltava do seu trabalho na Zona Sul do Rio de Janeiro rumo à Baixada Fluminense, um lugar infernal, que não abriga cenários que serão vistos nem na xaropada da Copa e, muito menos nas Olimpíadas. É o cu do Região Metropolitana desse estado. E é lá onde moram os trabalhadores da capital...fora da capital. O trajeto de onde esse cozinheiro trabalhava até a cidade dele, São João de Meriti, com trânsito, leva mais ou menos três horas. Ele trabalhava no instituto para cegos Benjamim Constant, em Botafogo, e provavelmente pegaria um ônibus até a Central do Brasil e de lá um trem ou uma van - que seja, ambos são uma merda, ônibus é praticamente inexistente e não atende a demanda, enfim, eu não vou falar disso. Apenas entendam que uma pessoa pode perder quase seis horas do dia dela dentro de transportes coletivos, convivendo com gente que nunca viu na vida, gente irritada de fazer quase uma ida para São Paulo diariamente. Tá todo mundo muito puto de ganhar menos de mil reais por mês, dá pra entender? Então, na semana passada, o cozinheiro pegou o ônibus rumo à Central do Brasil e no meio da viajem levou um tiro.

Até onde se sabe, um cara que estava em pé atirou no cozinheiro, o coletivo estava lotado e o trânsito por volta das 17h, aquela maravilha. Sendo que, de um dia para o outro, a temperatura no Rio caiu dez graus, passando de um calor infernal para um vento gelado. O cozinheiro seguia com a janela aberta, obviamente sem necessidade porque estava frio, mas sabe como é... O cara pediu ao cozinheiro que fechasse a janela, o cozinheiro negou. O cara insistiu, o cozinheiro bateu o pé. Então o cara saca um 38 e pá! dá um certeiro no coração do cozinheiro. O que você pensa nessa hora? "Que psicopata! Isso lá é motivo pra matar alguém? Onde nós vamos parar...blá blá blá". Sabe, antes que eu diga o que realmente penso sobre isso, até bem pouco tempo costumava repetir a ladainha de que o Rio de Janeiro era violento mas de uma violência diferente de São Paulo. Eu dizia para meus amigos paulistas que aqui nós não estourávamos a cabeça de nossos pais com pauladas, não atirávamos nossos filhos da varanda e muito menos entrávamos em um cinema com uma submetralhadora... repetia que isso era culpa do fluxo dos paulistas, um fluxo que condiciona e sufoca, o que favorece atitudes violentas extremas e inesperadas de pessoas obedientes.

Balela.

A verdade é que o tal fluxo transforma todo mundo em uma bomba - relógio em qualquer lugar. Sabe o que pensei quando vi o caso do cozinheiro?Deus me perdoe que acredito no filho dele, Jesus, mas quase posso entender o atirador. Eu já senti um ódio inexplicável de pessoas que nem sequer conhecia e sempre que isso aconteceu, estava dentro de ônibus. É até engraçado, se você pensar que não existe plural para ônibus, mas eles se multiplicam na vida da gente. Quero dizer que, o tal fluxo ou as condições sufocantes e mais o fato de todos os dias você passar uma hora dentro de uma caixa com um monte de gente que não conhece e ainda a certeza de que em um ônibus pode estar a síntese da mesquinhez humana, contribui para que alguém, já meio demente, estoure o peito de outro alguém. Basta estar com uma arma. Dentro de um ônibus, as pessoas ouvem som alto, deixam velhos e deficientes em pé, não fecham a janela nem no frio e nem na chuva e você ainda terá de passar uma hora com elas, percebendo claramente que estão se fodendo pra você, ou para o ancião que acabou de subir. Tudo isto é percebido e te irrita. Pra ilustrar, vou contar da última vez que me irritei seriamente com uma idiota dentro do ônibus;

Eu estava sentada na janela e me sobe uma piriguete com unhas enormes, tipo a cantora Alcione, a Marrom. Acho unhas grandes demais nojento, e, se eu fosse coronel de uma ditadura, mandaria cortar a unha dessas minas, bem como limitaria a venda de cremes de potão, para que elas parassem de entupir o cabelo daquele troço e você não tivesse que sentir aquele cheiro medonho tão próximo de você dentro de um coletivo. Mas sim, a piriguete...de repente ela me saca uma lixa e começa a lixar aquelas unhas imensas, decoradas com florzinhas ridículas. Acontece que o pó daquelas garras estava vindo inteiro para cima de mim, da minha roupa preta e na minha cara. E a piriguete pouco se danando para qualquer infortúnio que tal atividade pudesse causar, aliás, sendo bem preconceituosa acho que elas, as piriguetes, nem sequer pensam nisso.

Senti um ódio...

Um ódio...

Segurei o meu braço que queria se abrir num tapa na cara dela. Em dois minutos pude pensar na minha filha indo me visitar na cadeia, no meu namorado assustado, nos meus irmãos, na minha vó chorando de desgosto e, principalmente, no monte de colega repórter, muitos deles completos idiotas, tentando me entrevistar por ter cegado uma piriguete com um tapa na têmpora e PORRA! Eu me acalmei...Mas, e se não tivesse me acalmado? E, se tal qual o cara, depois de um dia inteiro de trabalho, de temperaturas extremas - nesse dia estava um calorão - do trânsito eu não segurasse a onda? E se eu fosse do tipo que anda com armas na mochila? Um minuto para lascar a vida. Quanto dura o alívio de se descarregar um impulso de ódio? Ódio em essência, vai dizer que nunca sentiu? Posso dizer que eu penso, que pondero. Mas e se estiver um dia em que não segure o meu braço e ele vá parar na cara de alguém? Posso levar um tiro de troco, posso fazer uma cagada. Quem sabe? Deus? As emissoras de TV? Os donos das empresas de ônibus? O Tarantino? Alguém deve saber.

*Este post é para o dramaturgo Mário Bortolotto que não é nem herói nem vilão, mas que descarregou sua raiva e talvez saiba alguma resposta.

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